O vazio de conteúdo e a solidão dos cronicamente online
Cada dia que passa o mundo ao meu redor fica mais em silêncio. Não tenho certeza se estou passando por uma fase de introspecção ou é assim que é o ritmo da nossa existência. É estranho ser uma pessoa de trinta e quatro, chegando na meiuca entre os quarenta e pensar que talvez eu já tenha atingido o pico de amizades da minha vida. Quanto mais o tempo passa, menos dessas amizades ficam no mesmo DDD que eu. A família que realmente é família para mim vai diminuindo, morrendo, buscando novos horizontes. São menos os que ficam ao redor, mais me sinto solitária, menos saio de casa, menos palavras pronuncio, falo muito pouco com quem amo e mesmo quando falo é minha voz por escritos em conversas de whatsapp. Gravo poucos áudios. Ligo menos ainda. É difícil ser socialmente travada em mundo onde ninguém mais sabe o nome do vizinho.
Não sei porque me sinto esquisita telefonando, mas sinto que não sei fazer isso e torço para que as pessoas que eu amo entendam que eu quero muito saber tudo sobre suas rotinas, que amo quando telefonam, mas todas as vezes que eu penso em telefonar, o tempo não bate, eu estou ocupada quando outros estão livre, estou acordada quando estão dormindo. E é ali perto da hora de dormir lá no final de domingo que eu sinto que os pensamentos que antes dividia com quem tinha essa intimidade cada vez mais são ecos em uma sala mais vazia. Só estou eu falando comigo.
Eu não sou exatamente uma pessoa extremamente tímida, contudo, tampouco sou extrovertida, vivo um pouco mais para dentro do que para fora e ainda que seja assim, sinto falta de ter uma existência para fora. É antagônico desejar algo que eu não consigo muito bem fazer, viver lá fora, conversar. Sinto falta de ter ao meu redor as pessoas que me fazem sentir confortável com tudo que me é desconfortável sobre conviver, que dividem comigo seus pensamentos esquisitos e que posso ser eu mesma sem performar qualquer coisa para ser aceita.
Mesmo estando cronicamente online com duas dezenas de pessoas me seguindo, quero conversar cada vez menos com pessoas e por conta disso, converso ainda menos porque o algorítimo tem essa fome de conteúdo que eu ando deixando meio subnutrida. Esse vazio se intensifica um pouco mais porque recentemente estou vivenciando novas despedidas, novas partidas de quem está perto para buscar o destino em outros continentes ou pela partida final desse plano para qualquer lugar que possa existir após a morte. Quando alguém vai embora para outro território, seja físico ou espiritual, sinto que perco as dimensões de nós, da voz, do gestos, da risada, da conexão porque também sendo eu relapsa com a espiritualidade, não consigo sentir a presença dos que partem de qualquer outra maneira simbólica.
Então me pego olhando como um zumbi para tela luminosa e me vejo nessa siririca doida de rolar com os dedos a linha do tempo infinita de fotos, palavras, dancinhas, 5 dicas, tuítes, frases, trends, reels, “this ain’t Texas ain’t no hold'em". Uma espécie de “kuchisabishii”, ao invés de comer porque minha minha boca se sente sozinha, são meus dedos que querem arrastar pra cima incessantemente a vida alheia. Adoraria dizer que conheci essa palavra em japonês porque sou poliglota, mas minha burrice é mais simplória, vi em um post, ou melhor dizendo, um conteúdo.
Tenho a sensação de estar buscando no instagram a dose de dopamina definitiva que vai me saciar e encontro só os ecos da minha solidão, um vazio completo de sentido, de ser. Sou hoje um não-conteúdo, um inviral, o anti-meme, lá fora engajamento, aqui dentro cada dia menos rede e menos social. O algoritmo me alimenta dessa obsessão por algo que me preenche de nada e me completa de uma fome impossível, aquele sentimento de desejar comer algo que não se sabe muito bem o que é. Não sei quem sou mais e, mesmo sem saber, sinto que não me encaixo.
Decidi escrever esse texto como uma espécie de castigo por não estar escrevendo essa correspondência, quiçá semanal, de textos. Já não bastava estar nadando totalmente contra a corrente de conteúdos rápidos, cortes, velocidade aumentada, com textos longos que demoro as vezes dois ou três dias escrevendo, mais uns 15 dias dançando tango com o tema na minha mente até achar uma espinha dorsal, um trecho qualquer que consiga escrever na mente que me pareça interessante, e vá lá, ainda condeno o sucesso dessa empreitada com a minha inconstancia em publicar. Fiquei um bom tempo escrevendo no vazio da minha mente, contudo nada me parecia bom o suficiente, tive um período de extrema apatia, toda semana pensava em escrever mas nada me satisfazia. Assim como todas as outras coisas no meu dia a dia. Nada me dá prazer.
Comecei a escrever esse texto a noite, um erro crasso de insone que pensa ocupar a mente enquanto o sono chega mas mergulha numa rave de pensamentos. Quando começo a escrever, minha mente fica invadida dessa voz narrativa que eu desovo nesses textos, que frequentemente também não escrevo, mas a voz da minha mente fica ali narrando e narrando escritos. Se começo a escrever à noite, as palavras gritam na minha cabeça pensamentos, o travesseiro já não é silencioso. As palavras não silenciam. Invejo quem dorme bem sem batalhar com a cama, não há mais paz para o insone, todo dia é uma luta perdida. A luta não é figurativa, é o sentimento, se não me educo com uma rotina militar de horários para dormir, acordar, horários de desligar tela, não durmo, mesmo com drogas hipnóticas e sedativas. Fico dançando esse tango entre a rotina regrada e robótica que preciso ter para funcionar como outros seres humanos e o prazer que chutar o balde de todas essas regras me dá, mas me consome.
Estava pensando sobre esse ponto da minha biografia em que fechei e vendi todos os meus sonhos, antes a tudo tinha um som e um cheiro específico, o som da playlist do Cosmos, meu bar. Tinha o som da risada do Henrique, tomando um copo de café, dos atendentes do dia, a risada passivo-agressiva do Lucas, do Edemilson (vulgo Gordo) falando bobagens e espremendo os limões do dia, do Guilherme preparando as frutas para os drinks, do pessoal da cozinha Ramon, Tassi, Rodrigo, Iara, todos que passaram por ali, picando e cozinhando pré-preparos. Tinha cheiro de coentro, molho de ostra, porco e os pratos asiáticos que servíamos. Tinha o som do Astrolab, o bar ao lado, com coqueteleiras batendo sempre com o Gabriel ou a Carol. Das pessoas que trabalhei, dos taxas, dos clientes que costumeiramente conversava menos que devia para uma dona de bar ou galeria. As conversas que tínhamos antes do ambiente ser preenchido pelas conversas dos outros. Depois da venda do Cosmos e do Astrolab, os sons da casa da Galeria e do preparo dos drinks em lata, o Eduardo brigando com o Gordo e o Jaime dando risada.
Quando a impossibilidade física de continuar tocando esses sonhos me fizeram dar adeus para eles, vender, fechar, focar em conseguir sair da cama, eu senti como se tivesse abortado meus filhos, minha família do mundo. Eu sinto falta dessa família do mundo que eu criei e hoje estão cada um espalhado por aí, seguindo suas jornadas. E as minhas esquisitices sociais fazem com que cada despedida soe mais amarga. Eu sei que vai ser diferente porque eu não sou constante em me entrelaçar em conversas, em ligar e dizer que estou com saudade, em perguntar como está tudo e reponder um pouco mais do que o mínimo.
Eu adoeci da mistura de luto com pandemia. Todos esses sons viraram o silêncio, preenchido ocasionalmente por um barulho de um isqueiro acendendo um cigarro tragado que me acompanha desde a pandemia. O refúgio literal que minha mente encontra em momentos de desespero, vá de encontro ao perigo, fume enquanto tenta se salvar e salvar os outros de uma doença respiratória. Eu não tenho mais um trabalho definido. Parei com tudo e decidi quando estava engolindo cerca de 25 comprimidos por dia para dor e todo o resto que meu único trabalho seria por um tempo fazer tudo possível para não ter mais dor da fibromialgia. Ou o mínimo possível.
Depois de cerca de muitos meses nesse processo, consegui chegar a um ponto que não tenho mas as dores incapacitantes que tinha e tenho conseguido administrar melhor minha subexistência. A coisa que me pega é que eu imaginava que depois de tanto batalhar fazendo exercícios com dor para não ter dor, quando eu não tivesse tão mal, eu ficaria contente. É impossível ser feliz com dor, mas o que eu encontro agora não é exatamente felicidade. É essa apatia extrema de tudo, esse cansaço de qualquer interação com pessoas contrastando com o sentimento de solidão profunda. A dificuldade de confiar novamente no meu corpo e conseguir viver com ele o mundo lá fora, andando, conhecendo, viajando, rindo, dançando, planejando, executando, criando. Um vazio que fica sendo preenchido por essa navegação infinita de linhas do tempo e por todas as séries bobas já produzidas na história do entretenimento. Achava que quando derrotasse a dor, ainda que nenhuma vitória seja permanente, eu encontraria novamente algum sabor em acordar todo dia.
E tudo é insuportavelmente insosso.
Eu estou nessa fase esquisita em que estou aos poucos me sentindo mais apta fisicamente e continuo mentalmente exausta o tempo todo. Aos poucos tenho pensado em quais rumos meu eu produtiva vai seguir, se volto para o mercado de trabalho formal, se continuo tentando fazer pingar uns trocados de outras atividades, se invento outros projetos para sonhar. É difícil, porque apesar de não estar mais preenchida por completo de dores físicas, minha bateria social e energia vital parece que não carregam mais. Sinto como se tivesse com a bateria arriada, ela já não carrega uma vida completa, só frações da vida que eu já vivi. Isso é o processo natural de envelhecer? É o cansaço de ter passado pelo trauma coletivo da pandemia? É a experiência extrema da dor? É uma depressão que me agarrou e fez morada? Não sei a resposta, mas sinto que também as pessoas ao meu redor que são da mesma geração que a minha estão assim também, eu me encontro nos seus olhares vazios, mais cansados, mais arriados, mais online, mais solitários, cegos da luz azul das telas e sem nenhuma vida lá fora. Passando o final de semana dormindo para continuar na segunda a remar o barco do trabalho e rolar a tela da chupetinha de dopamina.
Tenho sentido cada vez menos vontade de falar sobre mim, postar qualquer coisa, mesmo ficando horas e horas vendo uma avalanche de conteúdos que não são mais das pessoas que eu conheço. Talvez eu sinta falta de poder encontrar os eus online dos meus amigos no Twitter, a última plataforma de rede social em que era possível acompanhar as confissões da minha turma de amigos e amigas esquisitos longe das performances que precisamos fazer para nos adequar à família, um rescurso que minha comunidade de neurodivergentes precisa fazer para sobriver. Seria essa solidão uma depressão algorítimica? Sinto que a necessidade de Elon Musk e Zuckerberg de empilhar bilhões enfiando goela abaixo discurso de ódio e publicidade acabou com todo social que existia nas redes online, afastou todos os nossos amigos desses encontros casuais gostosos online e aproximou os desconhecidos que nos revoltam com seus flertes fascistas.
Para nós introvertidos, conhecer pessoas novas ou nos aproximar das que temos contato ficou mais difícil. Eu fui uma criança muito solitária que conheceu um computador na pré-adolescência, a internet me trazia o consolo de poder fazer amizades passando essa dificuldade inicial. Eu me sinto mais confortável de me aproximar de alguém escrevendo do que falando, pessoalmente tenho algumas dificuldades que, lá no início dessa coisa de plataformas de redes sociais, me ajudaram muito a conhecer pessoas que até hoje são extremamente especiais para mim e das quais me sinto extremamente sortuda por conhecer. Eu consegui superar a solidão e o bullyng e encontrar minha banda de esquisitos para seguir o baile, mas esse tempo de fazer amizades virtuais (“eu bato papo pelo meu computadoooooorrrr”) passou. Não existe amor nas redes sociais. Só a derrocada da democracia e o ódio de desconhecidos. Sei lá, se você me ama, me manda um telegrama, uma carta de amor, escreve, liga, não depende da minha estranheza em conversar para que possamos nos falar.
Talvez esse cantinho tecnológico em que eu me sentia tão acolhida também era só uma ilusão, como aquele tempo em que as pessoas olhavam para um mundo hiperconectado e tinham vislumbres de uma era fantástica conversando com pessoas do mundo inteiro. Como os sonhos das possibilidades maravilhosas da tecnologia, em que falar de uma cibercultura, ou seja, de uma cultura digital online cheia de possibilidades diferente da “vida” offline, quando era possível ainda se desligar da internet, fazia sentido e parecia muito bom. A mesma visão inocente e apaixonada que hoje a sociedade compartilha sobre Inteligência Artificial. Hoje quando alguém me fala de chat gpt e toda essa parafernalha, eu só consigo pensar na quantidade de processamento e de poluição no mundo que um simples comando de texto para fazer um vídeo do Silvio Santos cantando “Like a Virgin” com a cara no corpo da madonna consome. Deve ser uma pequena floresta. Penso também qual vai ser o monstrinho que vai sair da inteligência artificial, quando o otimismo inocente não conseguir mais esconder seus efeitos. Talvez fosse só minha visão jovem do mundo. Hoje com os olhos de adulto, nenhuma ferramenta dessas veio sem um amargo violento. E mesmo ciente dos perigos da inteligência artificial, faço minha parte em escrever os prompts que alimentam o próximo godzilla tecnológico.
Quando eu era pequena e conheci essa caixa amarela fantástica de falar com o mundo, que a gente cobria com paninhos brancos, tudo que eu queria era trabalhar com internet. Não tinha uma profissão específica. Eu só queria estar com essa companhia que me fazia pertencer. Eu fiz disso uma carreira, todos os meus empregos foram gerados na encrusilhada entre comunicação e internet, as empresas que abri dependiam muito da capacidade de seduzir online novos clientes usando essas mesmas ferramentas.
Hoje depois de toda fritação mental que foi a pandemia e ter empresas e pessoas para proteger, eu não quero mais trabalhar postando coisas. Parece tudo tão vazio. Longe de mim julgar e ser aquelas pessoas que falam “desliga o celular, vai ler um livro, caçar uma cachoeira”. E me vejo aqui no alto dos trinta e cinco tendo uma carreira que foi toda atrelada a internet que não me faz mais bem, mas que também já não conheço mais outra forma de existir. Consigo olhar para mim e ver o medo trágico da Leslie Knope em Parks and Recreation teve depois seguir seu sonho da carreira política amargar em um impeachment. Será que eu já passei do pico das minhas experiências e os anos dourados passaram? Será que só ficou um corpo doente para viver as frações de existir que me restaram, enquanto online as pessoas vão esfacelando toda e qualquer dignidade que surgiu no mundo depois do trauma das guerras mundiais e o advento dos direitos humanos? Enquanto o sonho de um estado de bem-estar social vai morrendo com o partido dos trabalhadores batendo continência pra milico, negando homenagear os mortos e feridos da ditadura e aprovando uma lei que admite uma categoria de sub-trabalhores de uber fora da carteira de trabalho. Que quadra miserável da história para estar vivo.
Para todo o lugar que eu olho, só parece que tudo está desmoronando. Enquanto o planeta queima, os bilionários e líderes mundiais brincam de quem tem o maior pênis e o que resta de nós está muito cansado, isolado de qualquer senso de comunidade para prestar atenção. Ou será que é a incansável busca por próposito que me faz olhar o mundo e me sentir assim, como se não houvesse sentido em nada? Dia desses assisti um documentário do Obama, imagino que ele vive muito bem, apenas um comentário completamente aleatório, ele falava sobre como a geração dos nossos pais baby boomers não buscava qualquer tipo de sentido no trabalho (e também de certa forma em tudo). Trabalho era apenas trabalho, uma forma de ter meios de vida para comprar uma casa, um carro, encher a geladeira de comida e viver uma vida nas horas de descanso. Já nós millenials, além de não conseguir mais comprar uma casa, um carro, mal conseguimos prover sustento para nós mesmo, menos ainda para uma família com crianças e tudo mais, ainda procuramos propósito e sentido no trabalho. É uma conta que não fecha.
Eu queria encontrar uma vida além da dor quando saísse do quarto e parasse de precisar tomar morfina todo dia para sobreviver. Só que essa que eu encontrei não me faz mais feliz. Quero parir coisas novas, mas me sinto uma mulher insuficiente, incompleta, quebrada. Aliás como sempre me senti, porque foi como me ensinaram a experiência da minha mulheridade. Preciso encontrar substância na vida nessa dificuldade imensa de co-existir mediada por uma tecnologia que quer nos ver mais sedentos, solitários e cronicamente alimentando as engrenagens que nos matam, nos isolam e nos seduzem a pedir likes para uma vida bem mééééh. Que luxo hoje é ter uma casa sequer com um pedaço de grama. Sair de casa e fazer uma amiga.
Existe alguma outra vida lá fora?
Olá, aqui é a jana
Obrigada por ler esse texto até o final. Desculpa por não ter mandado textos todo esse tempo. Aliás, desculpa é o caralho, só eu sei os perrengues. Mas pretendo não ficar tão em dívida.
É muito daora saber que tem alguém que lê e curte essas groselhas, o que eu sinto um pouco de falta é poder falar com você que leu. Então me manda um salve depois <3
Outra coisa, depois que envio os textos, queria conversar mais com quem leu de alguma forma, os comentários, pelo que eu vi a maioria das pessoas não está muito por dentro do substack (nem eu, nem tinha usado esse troço antes). Mas de alguma forma queria ter um local para essa troca de ideias. Se você tiver uma sugestão, fala comigo? Você me encontra no Instagram e Twitter como @cosmixjana
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Que texto bom! É ressonante o sentimento de insuficiência e de que está tudo desmoronando. A busca pelo sabor não pode parar né, sigo rolando minha tela infinita e tentando acreditar em dias melhores ❤️🩹